“O homem ama a si mesmo? Ama sua alma? A resposta parece afirmativa desde o início: é evidente que cada homem se ama a si mesmo e ama sua vida. A experiência pessoal é testemunha disso: todo homem quer necessariamente ser feliz. No entanto, convém considerar a questão com mais cuidado, a fim de melhor penetrar no sentido de amor que cada pessoa tem por sua própria vida.
O amor é força unitiva, aquietamento e, na ordem espiritual: complacência no bem enquanto bem, união afetiva que é traduzida como “querer o bem para alguém”. Ao perguntar se o homem se ama a si mesmo, estamos nos referindo a um amor de ordem intelectiva e voluntária; pois já assumimos que cada uma das partes corporais e potências do homem são dotadas de um amor natural por sua própria perfeição, de modo que cada parte tende à permanência no ser e na estabilidade, e cada potência tende a sua operação e a seu objeto próprio. Quando perguntamos se o homem se ama a si mesmo, queremos nos referir à força com que o homem pode se aquietar e ter complacência em sua própria existência, de maneira global, e no que é primeiro e mais perfeito em sua própria existência: o começo de sua vida intelectiva: sua alma.
Como estamos falando de um amor intelectivo, a questão pode ser facilmente reduzida ao seguinte: A alma humana ama a si mesma? E a resposta afirmativa, embora pareça evidente, levanta muitas objeções: há casos em que a alma se ama a si mesma e outros em que se rejeita a si mesma e não se compraz em si, nem quer o bem para si, mas o mal. Assim, por exemplo, no caso dos viciosos, que sempre se encontram desgostosos consigo mesmos, ou no dos suicidas ou mesmo naqueles que amam o vício, já que “quem ama a iniquidade abomina sua alma”. Em todos esses casos, o homem não parece se amar a si mesmo, mas se odiar efetivamente; mas, se é assim, não se pode afirmar que o amor do homem por si mesmo e por sua própria alma é algo natural e necessário. O doutor angélico encontra facilmente a solução: é preciso dizer que o homem se ama de uma maneira natural e necessária “sob um certo aspecto”, mas ele pode se odiar a si mesmo “segundo outro aspecto”, embora o ódio por si mesmo já não seja mais natural, mas fruto de uma eleição da vontade.
Agora, nossa atenção deve se concentrar no que é o amor natural do homem por si mesmo, pois, se tentarmos provar a existência de um amor substancial, idêntico à substância da alma, é evidente que esse amor pertence à ordem da natureza. Contudo, a mesma experiência prova evidentemente que o homem sempre e necessariamente se ama a si mesmo e a sua alma com um amor intelectual natural.
1 – Em primeiro lugar, que o homem ama sua vida é uma evidência imediata: todo homem deseja ser feliz e a felicidade que ele quer é a perfeição de sua própria vida. Em que consiste exatamente essa perfeição é outro problema, cuja solução depende de formação ética e reflexão pessoal; mas o fato básico e inegável é o desejo natural de felicidade que existe em todo homem. Mesmo quem sente náuseas de sua própria existência, rejeita sua vida o tanto e o quanto não é o que gostaria que fosse, o tanto e o quanto não tem a perfeição que deseja e não pode suportar sua vida sem esse grau de perfeição.
2 – Outra prova de que o homem ama sua própria vida é que cada pessoa, em maior ou menor grau, goza e se compraz no exercício de suas próprias operações vitais: sentir e entender. Parafraseando Aristóteles, o Doutor Angélico explica que cada homem se deleita em suas operações próprias, porque nelas o homem percebe seu próprio ser, e perceber o seu ser é sempre deleitável: “Porque sentimos que sentimos, e entendemos que entendemos, sentimos e entendemos que somos; pois já foi dito antes que o ser e o viver do homem consistem principalmente em sentir e entender. Agora, sentir-se vivo pertence ao número de coisas deleitáveis em si mesmas; porque viver é bom por natureza e é deleitável sentir que você tem um bem em si mesmo”. A pessoa humana não se deleitaria em sentir a própria vida se não a amasse; assim, o deleite que sentimos no exercício de nossas operações é um sinal de que amamos não apenas a operação, mas a vida que sustenta tais operações como um princípio(alma) e cuja perfeição é encontrada nessas mesmas operações.
3 – Uma terceira prova pode ser acrescentada, mostrando não apenas que o homem ama sua vida em geral, mas que ama em particular e de maneira excelente sua vida intelectiva e, portanto, o princípio dessa vida, que é sua alma intelectiva. Santo Agostinho fornece essa prova mostrando que todo homem ama necessariamente sua vida, ele afirma que mesmo os mais avarentos preferem perder todas as riquezas do que a vida e, para não ir tão longe, preferem perder antes as riquezas do que a vista corpórea: antes de qualquer bem externo, o homem ama mais não apenas sua vida, mas qualquer bem de seu próprio corpo. Mas, no entanto – continua o santo bispo – ele prefere antes perder a visão do corpo do que a inteligência, que pertence a sua mente; porque uma alma sem inteligência não é mais uma alma humana, mas a alma de uma besta. “E quem não preferiria ser um homem cego na carne do que ser um animal dotado de visão?” Portanto, ele ama mais a vida de acordo com o intelecto do que sua vida corporal e sensitiva; e se ele ama esta última, no fundo ele a ama em ordem àquela. É evidente que o homem se ama a si mesmo e ama sua alma com um amor natural e, portanto, necessário: se o homem quer alguma coisa, ele quer a felicidade. Esse amor natural se ordena não apenas à perfeição das potências do homem consideradas cada uma separadamente, mas à perfeição de todo o subsistente e, portanto, ao acabamento e culminação do que é mais nobre nele: sua vida intelectiva. O homem, mesmo sem saber, amando a perfeição e a conservação de todas suas partes inferiores, ele as ama em ordem a sua vida intelectiva, que ama e agrada a ele mais do que qualquer outra coisa de si mesmo.
O amor natural de si mesmo e de sua alma é um amor intelectual, pois procede do conhecimento que a pessoa tem de si mesma: procede da notitia sui, na qual o homem e toda pessoa criada experimenta a bondade de seu ser. Mas é necessário provar que o amor natural de si mesmo vem do conhecimento intelectual.
Tradução: Sérgio Dias
Patricia Astorquiza – Ser y Amor: Fundamentación Metafísica del Amor en Santo Tomás de Aquino, pág. 244-246